domingo, 14 de março de 2010

Histórias de Jake - FIM


O barulho da chuva batendo contra o vidro da janela de seu apartamento no terceiro andar já havia se tornado um costume depois de quatro dias chovendo torrencialmente. A sala mal iluminada tem apenas a claridade que atravessa a larga janela de vidro, luz envergonhada que mal desvia das nuvens cinza que colorem o céu há dias. O aparelho de som de uma marca secundária emite uma música em volume quase inaudível, mas ainda assim triste e que o deixa ainda mais deprimido sentado ao sofá com os pés espichados sobre a mesinha de centro ao lado da garrafa de vodka com uma águia negra de duas cabeças estampada no vidro.

Os cabelos sem corte, compridos e bagunçados desde que levantou pela manhã e decidiu não tomar banho, as roupa típicas de quando não quer sair ou não se importa de ser visto mal vestido, o abrigo largo de tom azul claro e cheio de bolinhas das tantas vezes que foi lavado, a camiseta com a estampa Looney Tunes que tem desde os onze anos de idade, muito grande na época, lembra-se que quando a usava seu comprimento ia até os joelhos. A barba sem ser feita há dias e o bafo de meia garrafa de Vodka. Deixara de cuidar de si mesmo.

Ergueu-se do descanso do sofá e com dificuldade pegou a garrafa e despejou o liquido transparente no copo de vidro negro com boca larga, seus olhos podia ver através da bebida, podia vê-la escorrer e deitar-se sobre as pedras de gelo do fundo do recipiente, enxergava através e além dela, para o aparelho de músicas iluminado rodando o track 3 do CD, podia ver o... homem? O homem sujo e mal vestido com barba por fazer em pé diante dele no escuro de seu apartamento, o homem com uma arma. O revolver calibre 38 Rossi 4 polegadas erguido para ele. O dedo puxando o gatilho...

KABLAN

O corpo arremessado contra o sofá e o suor escorrendo de seu rosto, o peito descompassado puxando mais ar do que era capaz de respirar, e finalmente enxergando a garrafa caída no chão com a vodka escorrendo pelo azulejo da sala vazia.

A mão tremula largou o copo no braço do sofá e mais uma vez veio vagarosamente até a testa, a ponta dos dedos tocando-a suavemente procurando o buraco que sabia não estar lá, e um suspiro profundo de alívio ao constatar ainda estar vivo.

O som da campainha perfurou seus ouvidos tanto quanto o do revólver, que podia jurar a si mesmo ter escutado a bala abandonando o cano da arma. Exaltou-se um pouco, levantou do sofá e pegou a garrafa do chão para logo após depositá-la ao lado da televisão sobre o rack mogno, aquilo deixaria uma marca. Abriu a porta e viu o rosto que estava esperando a manhã inteira.

Vanessa olhava para o chão quando ele abriu a porta, sua erguida de olhos e o espanto em sua face ao vê-lo descreviam com exatidão o que ele sentia, era óbvia a resposta para a pergunta que saiu de sua boca:

-Você está bem?

O sorriso sarcástico de Jake não era disfarçável, mas estampado com luzes piscado ao redor dizendo o quanto tentava ignorar perguntas ou pensamentos ordinários. Algumas pessoas liam isso, outras nem sequer notavam. Ele balançou a cabeça para os lados para esvair a vontade de gritar “COMO VOCÊ ACHA QUE EU ESTOU?” , então deu espaço para que ela passasse.

-Entre.

Ela passou por ele e se apoiou no sofá, tirou os tênis revelando as meias rosa com bichinhos de uma mãe de vinte e três anos. Sentou-se sobre as pernas e jogou o cabelo para trás.

-Se eu fosse você, não ficaria assim tão à vontade.

Os olhos dela estalaram e sua cabeça fez um movimento involuntário, como se fosse atirada para trás, a severidade e frieza nas palavras dele puseram-na instantaneamente em estado de alerta.

-O que você quer Jake? Por que me ligou? Achei que queria me ver.

O sorriso surgiu novamente em seu rosto e mais uma vez ela balançou a cabeça. Fechou a porta. Começou a caminhar e passou por ela, pegando o capo de vodka no braço do sofá e rumando para a cozinha.

-Vou pegar um pano para secar este chão, enquanto isso coloque seu casaco no cabide, não quero que molhe meu sofá.

Mais uma vez ela pode sentir a agressividade no espírito dele, pode sentir o quão diferente ele estava, nunca fora tão rude assim, mas o que Vanessa não tinha enxergado, e nem mesmo tinha capacidade para ver, era que a cor dos olhos dele já não era a mesma. Diante dela não estava a mesma pessoa que conhecera. Ela levantou e colocou o casaco no cabide.

Ele voltou trazendo um pano velho e rasgado e o copo negro com dois cubos novos de gelo. Ajoelhou-se para secar a vodka que derramara no chão.

-Qual foi o resultado do exame?

Vanessa havia sentado novamente sobre as pernas e tomou por surpresa a pergunta dele.

-Como?

-O laudo médico. Faz um mês já, você já tem os resultados. Qual foi a resposta? De quanto tempo você estava grávida?

Ela deu um sorriso forçado e balançou a cabeça ao mesmo tempo em que involuntariamente sua mão direita passou os dedos pelos cabelos acima da cabeça.

-Não acredito que você me chamou aqui para perguntar isso.

Jake ficou em pé segurando o pano úmido.

-Não foi por isso que a chamei aqui, mas eu quero saber.

Ele caminhou até a cozinha e jogou o pano dentro da pia.

-Por quê? Que diferença faz isso agora? Eu não estou com ele, eu estou aqui, com você.

As palavras dela não o abalaram, depois de tantas mentiras que escutou nada mais que saísse daqueles lábios parecia ser verídico. Caminhou até o lado da televisão e encheu novamente o copo com vodka.

-Você está certa. Não faz mais diferença, isso não importa mais. É claro que se você não quer me dizer de quem era é porque a resposta é obvia não? Mas como sempre você acha que eu não tenho capacidade para entender as coisas do seu mundo. Você sempre me achou tão criança não é Vanessa? Sempre se julgou tão adulta e madura que nunca deu uma chance de verdade para nós. –Largou a garrafa, pegou o copo e virou-se de frente para ela. –Confesse que ficou feliz quando soube que perdeu aquele bebê!

Ela abriu aboca para responder, mas o ar saiu e entrou ao mesmo tempo e as palavras jamais saíram. Ela apenas baixou os olhos.

-Que tipo de pessoa é você? Feliz por ter perdido sua criança, mesmo diante de todas as dificuldades eu ainda consegui enxergar a felicidade e a satisfação de poder ter minha garotinha em meus braços. Eu teria largado tudo para nos fazer felizes, mas você acabou conosco. Você acabou com amor que eu senti por você.

-EU TE AMO!

Ela gritou e interrompeu a fala dele.

-Eu estou aqui não estou?

Ele sorriu novamente, o sorriso era cada vez mais forçado para esconder aquilo que realmente sentia. Ignorou a frase dela, ela não entendia que não era apenas a perda do bebê que o feriu, ele vinha sendo machucado há muito tempo.

-Você transou com ele Vanessa?

Os olhos dela se esbugalharam e ela ergueu a cabeça rapidamente.

-Depois da cirurgia, você transou com ele novamente não transou?

Ela queria falar, mas não conseguia, balançava a cabeça negativamente embora nem mesmo ela acreditasse mais em suas respostas. Baixou a cabeça.

-Você deveria saber que ele não significa mais nada para mim Jake. Ele é apenas o pai da minha filha e...

-Você sabe o que aconteceu quando ele e eu saímos do hospital naquele dia?

-Ele me contou.

Jake sorriu e tomou um grande gole do líquido quase quente em seu copo.

-E mesmo ele te contando você teve a decência de deitar com ele novamente? Bem, eu duvido que ele tenha lhe contado a verdade. Eu duvido que ele tenha contado que pagou homens para me matar, eu duvido que ele tenha contado e apontou um revolver para o meio da minha testa. Eu duvido que ele tenha dito para você que faria você voltar a chupar o pau dele e depois fuderia com você! Eu preciso duvidar disso Vanessa porque se você realmente sabe disso tudo e ainda está transando com aquele cara você é uma pessoa muito pior do que eu posso imaginar! Ele te contou tudo isso? Você sabia disso, Vanessa?

A voz de Jake já não tinha tanta ira ao final, parecia mais uma súplica para ouvir o que desejava. Uma reza para que ao menos ainda houvesse esperança.

A voz de Vanessa saiu ainda mais baixa do que da última vez. Envergonhada, ela se encolhia no sofá e segurava os braços como se tivesse frio.

-Ele... ele me contou.

As forças de Jake se esvaíram e ele não conseguiu mais segurar o copo que se espatifou no chão espalhando cacos negros pelo piso branco. Ele baixou a cabeça e suas palavras pareciam as de um paciente terminal ao proferir seu último desejo.

-Faça-me um favor Vanessa. Nunca mais apareça na minha frente. Nunca mais me ligue ou tente entrar em contato comigo. Suma, desapareça, vá cuidar da sua vida. Porque tudo o que eu fiz, meu amor, minha fidelidade, minhas dúvidas, meus erros, tudo o que fiz, falei e pensei em relação a você eu fiz considerando como você iria se sentir. Eu fiz sempre tentando aliviar cada traço de dor que você pudesse sentir, mas parece que você nunca pensou assim em relação a mim. Então, por favor. Desapareça da minha vida.

Não houve sorriso desta vez. Não houve como disfarçar, as lágrimas se uniram no canto de seus olhos. Ela se levantou e o abraçou. Ignorou os cacos de vidro e colou seu corpo junto ao dele, ele a abraçou de volta com força, e deitou o rosto no ombro dela. Ela o puxou para si e passou sua perna entre as dele, esfregou seu corpo nele e passou a mão por suas costa, puxou o ar entre os dentes e colou a boca em seu ouvido.

-Me beije.

Ele tinha os olhos fechados, apenas a segurou e balançou a cabeça negativamente. Ela segurou seu rosto de ambos os lados e o forçou a olhá-la.

-Me beije.

-Não. Não quero.

-Não minta, eu sei que você quer. -Ela passou a mão forte por suas costas e as puxou pela cintura dele vindo repousá-la entre suas pernas e apertando o monte que ali encontrou. –Eu sei que você quer, eu sinto que você quer.

Ele balançou a cabeça.

-Jamais beije alguém julgando que esta será a última vez. –ele disse.

Ela apertou a mão entre as pernas dele.

-Então não pense que é a última.

Ela o beijou ferozmente, forçando-o e o puxando para si, o jogou no sofá e se ajoelhou sobre ele, com uma perna de cada lado do seu corpo. Mais alta que ele, o beijou incessantemente do rosto e na boca inerte dele que não respondia.

-Eu sei que você quer, eu sei.

Ele correspondeu o beijo e os braços que mantinha largados ao lado corpo a pegaram pelas costas sob a blusa roxa e a puxaram para si, corpo contra corpo, um beijo selvagem e forçado, o beijo mais triste que já dera em alguém. Podia sentir suas faces molhadas pelas lágrimas se esfregando.

-Eu sabia, eu sabia que você queria.

...

..

.

Diante de seus olhos ele viu a balança dourada que enxergara meses atrás. Parte de seu coração era posta em um dos pratos e o restante no outro. Um lado representa o seu amor por ela, o outro, os pedaços de seu amor que foram destruídos.

Daquela vez seu amor venceu, o lado vermelho era mais pesado e ele disse a si mesmo que queria ser feliz com ela.

Hoje, a balança pendeu para o outro lado.

O prato do amor estava vazio.

.

..

...

As mão dele inverteram de rumo. Desceram das costas e fecharam sobre os ombros dela empurrando-a ofegante e descabelada para longe de si.

-Eu não quero! Eu não quero mais! NÃO QUERO!

As lágrimas escorreram de ambos os rostos e ela levantou-se rapidamente abandonando o colo dele. Correu para a porta, pegou o casaco no cabide e calçou os tênis. Parou por um instante ao segurar a maçaneta da porta, talvez quisesse olhar para trás, talvez quisesse dizer mais alguma coisa. Não olhou. Não disse. Girou a maçaneta, abriu a porta e saiu correndo.

Ele ficou parado no sofá por um instante, então se levantou e correu porta afora. Talvez quisesse vê-la ainda, ou dizer algo que ainda não disse. Não viu. Não disse. Ela já não estava mais lá, tinha aberto a porta sozinha, tinha girado a maçaneta de uma porta que não era a sua, ele acreditava que ninguém deve abrir uma porta que não lhe pertence, ao fazê-lo não é mais possível retornar. Tal e qual sua crença e o favor que ele pedira a ela, nunca mais se viram depois que a porta se fechou em suas costas.

Jake caminhou até o banheiro, e se apoiou na pia, em frente ao espelho viu a si mesmo, aquilo que se tornara nesses últimos meses e sentiu nojo do que via. Não era culpa de ninguém, apenas dele e das escolhas que havia feito.

Era tempo de mudar.

Pegou a lata e a sacudiu por um instante, então pôs a espuma branca na mão, passou-a pelo rosto sobre a espessa barba negra. Encarou seu reflexo mais uma vez, não havia mais lágrimas, elas haviam secado, chorara tudo que tinha em seu interior. Agora havia apenas um sorriso, uma leveza em seu ser.

Pegou a gilete e tirou a barba.




Um comentário:

  1. Nunca abra uma porta sem saber o que existe em seu interior...gostei disso kkk

    Belo final ...

    Abraços, Keli

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