sábado, 30 de janeiro de 2010

Histórias de Jake - Momento Crítico

Foi assim que começou. Foi dessa forma que se meteu neste carro. Nesta porcaria de lata velha branca com um motorista psicopata. Estúpido. Um grande e fedido estúpido ele tinha sido. Quem o reconheceria dos velhos tempos? Das pessoas que conhecera antes de se mudar para essa cidade fétida com ares de peixe? Nem mesmo aquela garota, a garota de olhos mesclados reconheceria o que ele se tornou. Transando com uma mulher que mal havia terminado o casamento. Uma mulher com uma filha. Isso apenas poderia acabar em uma grande merda, mas ele jamais deu ouvidos aos conselhos dos amigos, aos conselhos da mãe que agora ele podia visualizar chorando sobre seu caixão, sempre dera a desculpa "Estou feliz". Foda-se a felicidade. Deixe-a de lado pelo seu próprio bem. Morrer com um sorriso nos lábios. Muito poético. Pena que não estaria presente para admirar da própria poesia.




Quantas vezes imaginara este momento? Quantas vezes vira-se em sua mente frente a frente com este homem? "Traficante", era assim que o chamava, não na frente dela é claro, mas sabia que era. Usando uma calça de abrigo desbotada, mais surrada do que a própria alma, uma camiseta branca amarrotada. Claro que estaria amarrotada, a mulher que passava suas roupas não estava mais transando com ele. Talvez fosse mais disso que ele sentisse falta do que dela própria. O moletom escuro amarrado na cintura com um nó gigante lhe caindo em frente aos documentos, a barba por fazer. Nojo. Nojo era a única coisa que podia sentir daquele homem, mais ainda do que medo, ele era repulsivo, embrulhava-lhe o estomago mais do que qualquer cadáver que já tivesse visto.

Fechou os olhos para organizar a mente, não era hora de reparar nas roupas do psicopata, devia se preocupar com a própria vida.

O homem a porta coloca a mão no bolso do abrigo velho, tinha vários pequenos furos, parecia comido por traças. Pensou que ele fosse puxar de uma arma e acabar com tudo ali mesmo, mas sabia que não, Ricardo podia ser um psicopata, mas não era burro ao menos não TÃO burro.

A mão suja e calejada do homem saiu do bolso e mostrou seu conteúdo.

Prata.

Uma aliança prateada.

A aliança prateada que faltava no dedo dela.

A primeira aliança que ele colocou no dedo de uma mulher.

E havia seu nome gravado nela.

-É Jake né? -a voz do homem parecia fantasmagórica como os assassinos de Sin City. -Venha cá, vamo conversá. -um assassino psicopata formado na Escola Pública de Educação Infantil do Chico Bento. Suas palavras eram tão repulsivas quanto sua aparência, mas ainda assim não diminuíam sua presença e Jake sentiu que sua repulsa começava a dar espaço para o medo.

-O que você quiser dizer ou fazer. Pode fazê-lo aqui mesmo. Não vou a lugar nenhum com você. -era um blefe, mas precisava blefar, não podia deixar as coisas fugirem ao controle, mas ao mesmo tempo não conseguia pensar com clareza, quão cego se tornara? As coisas já haviam fugido ao controle desde o dia em ela o beijou na loja em que trabalhavam, e ele estava prestes a perceber isso. Perceber que deveria ter parado enquanto teve chance.

E tivera algumas chances.

"Certas coisas acontecem simplesmente porque precisam acontecer." -a voz de Mortícia varou sua mente.

"Você é um híbrido Jake" -Seus pensamentos pareciam cartas de baralho nas mão de um jogador em Las Vegas.

"Você vai enterder" -Sua cabeça doeu, sentiu náuseas como se uma bola de ar saísse do centro de seu corpo e pulasse de sua boca para o infinito.

"Deixe ele sair!" -estremeceu. Sentiu os músculos contraírem e a respiração faltar.

-O que eu vô faze com você eu posso faze agora ou quando não tivé niguém olhando. Você qui sabi. -os olhos de Ricardo eram frios e sua voz trazia uma raiva descomunal, como um cachorro que late para um intruso.

Sentiu o coração parar.

Qual das falas haviam o afetado mais? Ricardo dizendo que o mataria ou Morticia em sua mente? E do que adiantaria entender isso se logo não entenderia mais nada para o resto de seus dias?

O coração voltou a bater.

Uma única batida mais forte. O corpo tremeu e ele perdeu o equilíbrio. Segurou-se na cama onde Vanessa derramava lágrimas.

"Por quem você está chorando vadia?"

A força voltou a seu corpo, a audição ficara um pouco embaçada, como se estivesse subindo uma serra.

Encarou Ricardo.

-Vem guri. Vamo dá um volta.

Os sentidos de Jake normalizaram e ele estava calmo novamente. A tontura havia passado, talvez quase tivesse entrado em pânico, talvez sua pressão estivesse alterada, é claro que ele não notou a verdade, não pôde notar. Ninguém comum notaria uma mudança tão sutil. Apenas talvez ELA, acontecia com ela as vezes. Morticia sempre falou da "outra" que existia dentro dela, ele sempre fora cético para tais coisas, mas era inegável que podia ver quando o cabelo negro dela assumia um leve tom avermelhado. Quando Morticia deixava de ser Morticia.

E agora era sua vez,

Jake deixara de ser Jake.

Seus olhos verdes não estavam verdes.

Eram castanhos.

Castanhos como um mel escuro.

Talvez tenha sido isso que fez Vanessa para de chorar quando ele a olhou.

Olhou-a e saiu do quarto junto com Ricardo.

Os largos corredores do hospital faziam o som de seus passos ecoarem pelo ar suprimindo o volume de sua respiração descompassada. À medida que seguia Ricardo para fora do hospital começava a sentir a insegurança, voltava-lhe o medo e a consciência de que lidava com algo muito maior que ele próprio. Começava a entender. Começava a sentir o que Ricardo realmente era e o porquê eles estavam ali.

Saíram para o ar livre e o dia havia escurecido. As nuvens negras que duas horas atrás quando acordara eram inexistentes cobriam o céu. Mais uma vez tentou se concentrar, sabia que precisava estar de cabeça fria quando entrasse naquele carro, precisava medir suas palavras e se preparar para escutar algumas verdades, e também algumas besteiras, sua decisão ao final do dia se basearia naquilo que decidiria acreditar após esse encontro.

Ricardo desligou o alarme da camionete branca. Ambos entraram sem uma palavra sequer, como porcos se encaminhando para o abatedouro. Porcos.

Ele ligou o motor do carro e arrancou rapidamente. O ronco do carro era irregular, mais alto do que o normal e entrava do carro abafando os sons do interior. Ricardo olhava através do pára-brisa, e foi com o olhar fixo no além que começou a falar.

-Há quanto tempo tá saindo com a Vanessa? -a voz era firme e os erros de português começavam a não ter importância alguma.

-Cinco meses. -responde Jake com o mesmo tom firme. Quanto tempo aquele tom duraria?

-E o filho? É di quem?

Não esperava por isso, sabia que Vanessa havia dormido com o ex, que havia mais chances do filho ser um “psicopatinha” do que dele, mas a forma com que Ricardo perguntava, não era a forma que um homem pergunta quando acha que engravidou alguém. Era com a seriedade de um marido que estava disposto a matar o amante que engravidou sua mulher. Os atos e palavras de Vanessa estavam novamente sendo posto em uma balança, e desta vez, a pesagem não seria tão simples.

-Ela me disse que o filho é seu. -respondeu em voz baixa, pensativo.

-Então você num sabe! -exclamou Roberto como se tivesse ensaiado o momento, e Jake percebeu que caíra em uma armadilha. Claro, responder o que ELA acreditava não era o mesmo que ELE pensava, e isso só podia levar a uma conclusão lógica. -Então você transô co'ela!

Ignorou o erro, a exclamação mal feita do farrapo ao seu lado e encarou os próprios pés no carro. Quanto mais se esforçava para ficar atento em suas palavras mais entregava o jogo, e agora não havia mais por onde fugir.

-Sim. Tansei.

-VAGABUNDA! -gritou Ricardo batendo contra o volante do carro e indo parar no meio das duas pistas da avenida, os carros na pista lateral buzinaram e alguém deve ter gritado um palavrão, o carro voltou para o local normal na pista, mas o coração de Jake continuou no lugar errado de seu peito.Ricardo balançava negativamente a cabeça como se não acreditasse no que ouvia. Bateu mais uma vez no volante.

-Quanto tempo tão transando? -e pela primeira vez virou para o lado para encará-lo. - Quanto tempo faz que tá comendo minha mulhé?

Os olhos castanho mel de Jake estalaram. Seria verdade? Mulher dele? Há tempo eles haviam se separado, o que Ricardo estava dizendo? Seria um homem possessivo que não admitia a perda da mulher e mesmo separados ele continuava a chamá-la de sua? Ou teria ele sido enganado todo esse tempo e Vanessa mentisse para ambos os lados, escondesse um do outro, sem dúvida isso explicaria algumas coisas, principalmente o fato de ele jamais ter estado na casa dela.

-Dois meses. Estamos transando há dois meses.

-VAGABUNDA! -ele gritou novamente- VAGABUNDA FILHA DUMA PUTA! -batia contra o volante e o velocímetro aumentava- TU VAI SE FUDÊ COMIGU! EU VÔ TE PEGA E TU VAI SE FUDÊ COMIGU!

Jake segurou o apoio da porta sem nem ao menos perceber, o carro ficava mais rápido e a avenida parecia não ter mais fim, não sabia nem sequer onde estavam. Não sabia como o dia iria terminar, se é que iria terminar.

-Quanto tempo você esperava iscondê isso de mim? -perguntou Ricardo com um tom de voz mais leviana, baixando aos poucos a velocidade do carro.

- Esconder? -indagou Jake realmente surpreso. -Não estava escondendo. Eu estava saindo com uma mulher solteira, ela me disse que...

-Ah qualé, quem é o otário nessa história então? -interrompeu Ricardo em um rompante.

-Ela me disse que vocês estavam separados, e que a ultima vez que vocês sa...

-Duas semana! Faz duas semana que eu comi ela! -Jake não voltou a falar, engoliu em seco. Não sabia. -Eu tava comendo ela e na real que tava me fudendo era ela. Dando pra você, um pirralho de bosta!

Não havia mais o que ser dito. Não havia mais do que se defender, quem era a vítima nessa história, sempre recriminara Ricardo, um traficante psicopata, mas estaria ele assim tão errado pela fúria que sentia agora? O pior, no lugar de Ricardo gostaria mesmo de dar uma lição no amante de sua mulher, talvez ele próprio não o fizesse, mas não tinha duvidas de até onde Ricardo poderia ir.

-Aquela vagabunda! -falava Ricardo agora mais para si mesmo do que para Jake. -Larguei um trabalho de quatro milão por mês pra me muda pr'essa bosta de cidadi fidida de pexe, pra ela cuida da filha e mora cá mãe, e ela me sai dá o cú pra um piá de merda que nem esse, ah mais ela vai se fudê cumigu, eu vô cume o rabo dela ela vai vê, ela vai precisá de mim, e cuando ela vié ela vai se fudê, ela ainda vai volta pra chupa meu pau, ela sempre volta.

Freou o carro de repente e Jake quase acertou a cabeça no console, havia parado na frente de uma casa amarela em um lugar que jamais estivera antes, mas podia perceber que era longe e nada amigável.

-Sai do carro! -disse firmemente Ricardo, sem pensar Jake abriu a porta, saiu e deu a volta por trás da camionete, ao envergá-lo ele não estava mais sozinho, junto dele havia mais dois homens altos, um mais magricelo e outro negro e forte, com braços largos. Um pouco mais afastados, dois garotos, jovens mas mais altos e mais fortes do que Jake, ambos sobre bicicletas. Ao se aproximar ouvir o negro perguntar a Ricardo.

-É isso aí Rica? -"Rica", nada bom, intimidade, o homem perfeito para o trabalho, o tipo de cara que faria um serviço sem perguntar por que. Qualquer serviço.

Os quatro homens o encararam. Viu Ricardo entregar um maço de dinheiro ao negro. Então Ricardo entrou no carro novamente e ligou o motor.

Não sentiu medo desta vez, não saberia descrever o que sentia, mas o mais próximo que poderia dizer é que estava conformado, estava pronto para receber o que quer que fosse. Cansara de lutar, ao menos isso colocaria um final em tudo.

-Vai embora moleque. -disse o negro cruzando os braços. -Não tem nada pra ti aqui, vai embora.

Jake entrou no carro e apenas quando sentou percebeu. Não era verdade, era um teatro, era a forma que Ricardo, um cara com mais de trinta encontrava para assustar criancinhas. E por um instante ele conseguiu.

O motor do carro ligou novamente e puseram-se e movimento, sentido oposto agora, em direção de onde vieram. Ricardo segurava o volante com apenas uma mão e com a outra mexia no bolso do abrigo. Pegou algo e serrou o punho em volta.

-Não vô faze nada com você agora. -começou a dizer com a voz baixa- Eu tinha prometido uma grana pr'esses cara pr'eles te pegá, mas vô te dá uma chance. Semana qui vem ela sai do hospital e vai tê o laudo. Vamo vê de quanto tempo ela vai tá, aí nos vamo conversá de novo. Agora eu vô te dize uma coisa, nesse meio tempo vô te dá um aviso: Fica longe dela.

Jake sabia que o dia estava no fim, apenas não sabia qual seria o final. A idéia de ter uma conversa civilizada com esse sujeito já não lhe passava pela cabeça, Ricardo era muito pior do que imaginara.

Fica Longe Dela!!!

O psicopata começou a dirigir mais rápido. Ele, sentado no banco do passageiro usava de todas as suas forças para manter a lucidez, não sabia mais o que estava acontecendo, não sabia o que era verdade e o que era mentira, começava a pensar que nunca vivera de verdade.

Este é um aviso. Fica, longe, dela.

Jake rodeava a aliança de prata no anelar direito, mania que pegara nos últimos meses. Nunca havia usado uma aliança, quando decidiu colocá-la no dedo de alguém, este foi o resultado. Ricardo segurou o volante com uma mão e abriu o punho que mantinha cerrado revelando novamente a aliança de prata, a outra aliança, a que formava par com a sua.

FICA LONGE DELA!

Ele apenas olhava, tentava processar o que acontecia ali, mas as coisas eram rápidas demais, tudo com Ela acontecera rápido demais, nunca tiveram tempo para pensar direito no que estavam fazendo, e agora... agora esse lunático estava dirigindo um carro em alta velocidade pelas ruas mais movimentadas da cidade ameaçando tirar sua vida.

O carro parou muito rápido e dessa vez Jake acertou a testa com força no console do carro. Não viu Ricardo sair mais ouviu a própria porta abrir e sentiu ser puxado para fora. Antes de recuperar o equilíbrio foi arremessado contra um muro de concreto branco do outro lado da calçada do qual Ricardo estacionara em cima. Recuperou a visão e sentiu um metal frio lhe pressionar a cabeça contra a parede. Uma arma, um revolver calibre 38 Rossi 4 polegadas, conheceu, seu pai tivera um.

Fica...

longe...

DELA!

Um sorriso abriu no rosto de Ricardo. Puxou o cão do revolver.


...continua


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