segunda-feira, 25 de julho de 2011

Capítulo III - Unicórnios, bastardos e assassinos

A ventania e o céu nublado do final de tarde de sábado fazia os doze ou treze presentes se encolherem dentro dos casacos pretos. O túmulo comprado ficava próximo ao coração do cemitério privado Deusa da Rosa, um setor ainda pouco ocupado e com um gramado verde ainda amplo, sem grandes construções. O enterro de Natasha contava com mais funcionários da funerária e do cemitério do que com seus próprios parentes. Adiantado, o marido segurava a mão da pequena Renata ao lado da cova, os olhos avermelhados pelo choro de Renan contrastavam com a face imutável da menina de quatro anos. O cabelo negro e liso da criança chegava quase na altura do pescoço, usava agasalhos cor de rosa em respeito ao gosto do pai, mas abandonara as bonecas quando completou o terceiro ano.

No momento em que o primeiro dos quatro carregadores pôs a mão no caixão para removê-lo do interior do carro fúnebre o som do trovão anunciou a chegada da tempestade, o último feito do espírito de uma bruxa morta. Seu espaço no cemitério havia sido comprado há cinco anos, mas era parte de uma encenação, um teatro aos olhos da mãe, do marido, da filha, e dos demais. Seu corpo havia sido cremado e suas cinzas jaziam na pele de um veado para serem lavadas pela chuva que sua própria alma derrubava, apenas uma porção ficaria dentre os para trás, um pequeno punhado dentro de um frasco de vidro selado por uma triquetra na palma da mão de Jacob, que observava tudo à distância ao lado de sua companheira.

-O que acontece agora? Sem a Natasha o grupo nunca ficará completo. – Perguntou a mulher loira parada ao lado de Jacob. Um pouco mais baixa que o companheiro, tinha as mãos nos bolsos do leve casaco de camurça que começava a molhar com a chuva.

-Vou precisar fazer uma viagem, e você vai me fazer um favor. – Respondeu Jacob abrindo um guarda chuva preto. Estavam parados sob uma árvore afastada do local onde o padre proferia as últimas palavras antes de baixarem o caixão de Natasha. Notável era como ninguém achara estranho um padre rezando no enterro de alguém que jamais pisou em uma igreja. Mesmo o casamento, último momento que Jacob e Natasha se viram antes de ele sumir, havia sido realizado em um pequeno bosque no interior do estado.

-Para onde você vai amor? – fez uma segunda pergunta a loira magricela enquanto intimamente acariciava a aliança de ouro branco no dedo anelar esquerdo.

-Vou até a capital do estado vizinho. Preciso encontrar a Juliet. – Jacob sabia que enfrentaria problemas ao contar, mas também sabia que a situação seria ainda pior se recusasse.

-Juliet? Você quer dizer aquela vadia dos unicórnios que te trocou pelo seu melhor amigo? O que você pensa que vai fazer viajando quase mil quilômetros para encontrá-la? – A cada palavra o tom da voz da pequena garota meiga aumentou, sendo quase audível aos presentes no enterro e por pouco não atrapalhando o discurso do padre.

-Por favor, Évora, meu bem. Baixe seu tom, não quero que nos percebam. – Respondeu calmamente Jacob sem olhar para sua companheira, ainda fitando o padre que começava a se empolgar com o discurso.

-Então me explique a razão de você querer visitar sua ex-namorada logo após a morte de sua melhor amiga. – As palavras de Évora mal passavam por seus dentes, a tensão começava a aparecer nas laterais de seu rosto com o maxilar apertado.

-Acalme-se. Vou te contar. – Respondeu Jacob apertado o pequeno frasco de cinzas dentro de seu bolso. – Conheci Natasha próximo de meu 19º aniversário. Naquela época eu estava passando por alguns problemas, mulheres, dinheiro, e algumas complicações maiores.

-O que isto tem haver com a Juliet? – Interrompeu Évora impaciente, tirando as mãos dos bolsos e arrumando os longos cabelos que lhe voavam no rosto e cruzando os braços a seguir.

-Vou chegar lá. Também foi a época em que descobri o espírito ancião dentro de mim, quase perdendo o controle sobre ele algumas vezes. Como você bem sabe, Natasha também tinha um espírito além do próprio habitando seu corpo, e para cumprir nossa missão aqui precisamos nos tornar apenas um com este ancião.

-Já conheço essa história. Vocês irlandeses têm muitas crenças malucas. – Zombou Évora, agora batendo freneticamente o salto alto do pé esquerdo contra o chão. Jacob percebeu, mas pareceu não se importar.

-Natasha era mais forte que eu naquela época, e para me ajudar ela me deu uma benção.

-Benção? – Surpreendeu-se Évora.

-Não sei como o seu povo chama. Mas não é o simples toque da mãe na testa do filho antes de dormir, nem o pai que entrega a filha no altar. Benção é quando se parte um pedaço da própria alma e o entrega a outra pessoa. Natasha deu-me uma benção quase dez anos atrás, é algo que apenas pode ser trocado por duas pessoas que compartilhem de um grande amor.

-E onde está essa benção agora? – Perguntou Évora encarando Jacob, e desta vez ele ignorou as citações do padre e olhou para o rosto da companheira.

-Dois ou três anos após recebê-la eu a entreguei para Juliet. Agora preciso dela de volta para poder reverter isto. – Jacob largou o frasco no interior do bolso e colocou o cabelo negro para trás da orelha. Escondido entre os cachos sempre rebeldes, uma mecha de cabelo liso e vermelho. – A bruxa anciã que habitava a alma de Natasha agora vive dentro de mim. Mesmo eu tendo me unido com meu ancião, não posso mantê-la sob controle por muito tempo, está além das minhas aptidões, preciso do pedaço da alma da verdadeira Natasha para controlar a bruxa que vive dentro da minha mente agora.

Todo o ciúme que por um breve instante habitou os pensamentos de Évora desapareceu. Não imaginava o quão longe Jacob havia ido na tentativa de salvar a amiga.

-E quanto à menina Renata? Você disse que ela é forte. – Questionou Évora.

-Espero que ela tenha pelo menos metade da força que a mãe dela me descreveu. Mas ainda não está na hora. O pai da menina é um forte sacerdote, pode aguentar o que está por vir até eu regressar da minha viagem, e você da sua. – respondeu Jacob.

-Para onde eu vou?

-Você vai até a capital, no Hospital Psiquiátrico. Precisa tirar minha filha de lá antes que aquele tal de Tenente Ramires descubra que fui eu quem matou o Ricardo. – As palavras de Jacob foram abafadas e seus olhos quase queimaram. O susto o forçou a abraçar sua companheira e abrigá-la no interior do próprio casaco.

Os gritos dissiparam o pouco mais de uma dúzia de pessoas que assistiam ao enterro. Apenas uma ficara para trás. O padre jazia deitado frente ao caixão, desmaiado e com bíblia caída ao seu lado em chamas, sendo apagadas lentamente pela chuva incessante. Havia sido atingido por um raio. As conclusões de Jacob o levavam a crer que o padre não estava ali para perdoar Natasha e a encaminhar até as portas do céu, estava ali para entregá-la ao outro senhor. Não era novidade para ninguém, bruxas não gostam de padres.

Évora saiu do aconchego do peito de seu companheiro e olhou na direção do caixão. Apenas o sacerdote e a pequena Renata continuavam imóveis frente ao corpo queimado do padre, apenas eles já esperam aquilo.

-Por que quer que eu sequestre a Sarah. Há pouco mais de quinze dias você nem tinha certeza da existência dela. – Questionou Évora inabalada pela queda do raio, Jacob arrumou o guarda chuva sobre o dois novamente.

-Vamos levá-la conosco agora porque depois que deixarmos essa cidade, não teremos mais motivos para retornar. Conheço seus dons meu amor, sei que não vai ser nem mesmo um desafio entrar e sair com ela daquele lugar. – Disse sorridente Jacob. A pequena Renata acabava de apertar o botão que acionava a descida do caixão para o fundo da cova. Os operários do cemitério chegaram correndo junto com a equipe médica e começaram a cuidar do padre e a retirar os curiosos de perto.

-Vamos meu amor. Temos que pegar a estrada. –Disse Jacob passando a mão sobre o ombro de Évora e caminhando para a saída do cemitério.

-Jacob.

-Sim?

-Se apenas é possível trocar uma benção entre duas pessoas que compartilham de um grande amor. Como você vai pegar a que está com Juliet? – Perguntou Évora e parou de caminhar para encarar Jacob. Ele não se permitiu sequer mudar a feição em seu rosto.

-Ainda não sei. – Respondeu.

A raiva voltou aos maxilares de Évora. Desvencilhou-se do braço de Jacob e caminhou firme com os saltos fazendo barulhos secos contra a calçada do cemitério na direção da saída. Parou apenas em frente ao carro do noivo, um Ford Maverick cor grafite de 1972, a grande paixão dele. Encolhida e com frio sob a chuva, virou para trás para ver quanto tempo Jacob demoraria a chegar e destrancar o carro, ele caminhava até ela pacientemente. Ambos tomados pela angústia foram incapazes de notar o jornal derrubado e encharcado no meio fio ao lado do pneu dianteiro do carro, a capa estampava uma manchete em letras garrafais: POLÍCIA REVELA NOME DO SUSPEITO DE MATAR RICARDO CASTILHOS.


...continua

Um comentário: