sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Histórias de Jake – ilhado

Choveu muito naquele verão.




Há mais de quinze dias a chuva não cessava. Cidades litorâneas têm certo problema quando a chuva é demais, um problema facilmente perceptível, mas que acontece de tempos em tempos, e mesmo assim providências deixam de ser tomadas. Começou em um domingo. Havia sido um domingo quente. Quente, mas chuvoso.

Já anoitecera.
Ele e o amigo estavam no quarto. Música ligada, ventilador soprando o ar quente sobre os rostos suados, jogavam vídeo game e riam juntos, um torcendo que o outro perdesse para lhe tomar a vez, um ótimo trabalho em equipe. Bateram à porta do quarto.

-Já ergueram as coisas de vocês?

Era um grande alojamento. Várias pessoas moravam juntas, algumas tinham mais afinidade, outras menos. Os dois eram melhores amigos, havia mais um integrante, UMA integrante A garota de humor explosivo, demoraram algum tempo para aprender a lidar com ela mas chegaram na conclusão de que era sempre melhor lhe dar a razão, mesmo que ela não a tivesse.

Levaram um susto com a pergunta e desceram as escadas até o térreo.
A água já cobria boa parte do lado oposto da rua, era apenas uma questão de tempo para que os alcançasse se Deus não parasse de chorar. E pela intensidade das lágrimas não tinham muito tempo.

Os quartos do Amigo e da Amiga de temperamento instável ficavam no térreo. A decisão foi rápida e óbvia. Tudo iria para o Dele. Roupas, eletrônicos, livros, cobertas, colchões, tudo.
Trinta quartos. Dez no andar térreo, os demais no segundo piso, separados em duas alas, dez para cada lado. Alguns ainda estavam disponíveis. O Amigo era mias velho, pensava com mais clareza sob pressão. Arrombou a porta do quarto da gerência -que provavelmente estava se preocupando para a água não invadir a própria casa neste momento- seria mais barato comprar uma fechadura nova do que a mobilha toda. Dez horas depois não sobraria porta alguma para ele colocar fechadura.

Pegaram as chaves extras dos quartos que ainda não haviam sido alugados. Dividiram entre s demais moradores do andar térreo e começaram as mudanças. O Amigo não tinha muitos móveis, a troca foi rápida. Algumas malas e dois colchões. A Garota de temperamento instável deu trabalho. Seu ceticismo os impedia de trabalhar. Enquanto ambos se preocupavam em carregar o pesado, ela tinha um largo sorriso, dizendo que a água não os alcançaria. Meia hora depois a sola de seus tênis estavam molhadas e o sorriso havia desaparecido. Empacotara todas as roupas.

Meia noite.
A água surgiu dos bueiros.
Apenas uma hora após o inicio da movimentação e o térreo já tinha a altura de dois dedos de água.
Os moradores se dividiram e dois grupos, as duas alas.
Não conseguiriam dormir.
Ele não demonstrava as emoções.
Não conseguia. Caminhava de um lado para o outro. Falava pouco. Tentava manter a cabeça em ordem, ergueu o que tinha de mais valor, não acreditava que água chegasse até o segundo andar, mas já se preparava para o caso de acontecer. Separou duas malas pequenas e nelas colocou comida. Nada que pudesse estragar, eram porcarias, nada que alimentasse de verdade, mas o suficiente para não deixá-los morrer de fome.

Uma da Madrugada.

Acabou a Luz.
O Amigo tinha velas. Desligaram dois dos três telefones. Não sabia quanto tempo ficariam sem luz nem quantos dias estariam presos. Era melhor economizar bateria.

Duas da Madrugada.
O primeiro degrau da escada já estava submerso.
Ninguém sequer tentara dormir. Ele arrumara a cama do Amigo no chão, no próprio quarto e abrira um quarto desocupado para a Amiga, ela parecia mais calma agora, mas precisaria descansar em breve, deixara tudo pronto para os três.

Três da Madrugada.
Truco!
O Truco de seus amigos não se assemelhava ao seu. Regiões diferentes do país, as regras mudam, ele era o único de seu lado que não estava jogando, e por isso foi o primeiro a constatar que o terceiro degrau desaparecera. A água subia. E subia mais rápido.

Quatro da madrugada.
Tentou dormir, mas em vão, ficou apenas deitado. Levantaria uma ou duas vezes para olhar a água, como se por alguma razão sobrenatural, ela não estivesse mais lá quando olhasse.

Cinco horas.
Ouviu o amigo deitar-se na cama que arrumara no chão ao lado da sua, não se falaram, mas sabiam que nenhum dos dois dormia. Nenhum conseguiria.

Seis horas.
O sol trouxe consigo a esperança e a visão da água enlameada que tapava meio metro da vista que uma vez era o chão, ele continuava lá em algum lugar sob aquele manto marrom.
Sob a luz o Amigo tomou a iniciativa de desparafusar a grade que dava acesso à outra ala, dando assim passagem para o terraço no piso superior.
Fizeram juntos, abriram a passagem, pegaram a garrafa de vodka e subiram, conseguiram dar algumas risadas mesmo diante da tragédia, ou riam apenas para mascarar a verdade.
Sua cidade estava alagada.

Sete da Manhã.
Os telefonemas começaram. Com certeza a televisão já noticiava a existência de um novo reino de Atlantis. Os parentes se preocuparam e começaram a ligar, todos ao mesmo tempo, desesperando-se ao deparar com o sinal de ocupado - que deveria ser um alívio, ocupado significa telefone em uso, telefone em uso significa usuário respirando.
A garrafa de vodka jazia pela metade, a chuva entrara em recesso e o a luz amarela escaldava os ombros cansados dos sobreviventes.

Oito horas da manhã.
-Vou dormir. -ele disse.
O Amigo sinalizou com a cabeça. Sabiam que precisavam descansar. O susto havia passado, mas a história ainda estava longe de terminar. Depois teriam que sair, encontrar algum lugar limpo e seco onde pudessem comer, comprar comida. Teriam que juntar dinheiro com os moradores para comprar água, os canos secariam em breve.

Desceu até o quarto, fechou a cortina e ficou no escuro, a porta ficou destrancada como o de costume, ele e outros dois tinham acesso livre um ao quarto do outro, jamais tiveram problemas com isso. Deitou e colocou o braço sobre os olhos. Talvez tivesse cochilado. Talvez. Não deu bola ao ouvir a porta do quarto se abrir, mas tomou por surpresa quando o colchão se movimentou. A Amiga deitara a seu lado. Na mesma cama. Na mesma cama de solteiro. Usava o short preto de lycra, a camiseta surrada do time de handebol do colegial e os longos cabelos negros presos em um rabo de cavalo, a mesma figura que ela acostumara-se a ver nos finais de semana. Sua amiga, uma figura tão feminina quanto sua mãe. Fechou os olhos. Afastou os pensamentos. Por que ela se deitara ali? Tentou afastar. Estava muito bem no quarto que ele arrumara para ela. Mas ela saiu de lá, e veio até ali com ele. Não dominava os pensamentos. Ele estava cansado, a mente agia sem permissão. O coração bateu mais rápido. Estavam mais próximos. Ela tinha os olhos fechados. Deitados um de frente para o outro com a cabeça posta sobre o mesmo travesseiro. Sentiam um a respiração do outro. Fechou os olhos. Limpou a mente. Ouvia o coração dela. Ela se moveu, colocou o braço sob o travesseiro. Ela estava ali, ali, não estava dormindo. Encostaram os joelhos. Ele também colocou o braço sob o travesseiro. Não acreditava que faria o que estava prestes a fazer. Não acreditaria mesmo meses depois quando se recordava. Mesmo assim o fez.

Dormiu.


Um Grande Abraço
Diogo S.Campos

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