segunda-feira, 18 de julho de 2011

Capítulo II - Visita a uma Velha Amiga

A porta do quarto 2303, ala Oeste do Hospital Psiquiátrico Estadual, estava destrancada naquele final de tarde de quinta-feira. Assim como em qualquer outro hospital as pessoas não se conhecem e Jacob não precisou sequer agendar uma visita à sua velha amiga, simplesmente foi entrando.

-Olá Natasha, espero não estar perturbando. –disse Jacob à medida que adentrava no quarto e retirava o longo casaco marrom de inverno. Largou-o sobre o sofá, assim como o jornal do dia que trazia sob o braço.

-Eu já esperava sua visita. – respondeu Natasha em uma voz rouca e tossiu ao final. Fez menção de se mover para pegar um copo de água em sua mesa de cabeceira, mas Jacob a deteve e alcançou a água, que ela bebeu em ávidos goles.

A idade parecia tê-la pregado uma peça, era como se tivesse envelhecido oito vezes o tempo que estiveram separados. A pele ressecada e já quase murcha como a habitual pele dos idosos. Os longos cabeços que ora eram ruivos e ora morenos já não apresentavam tom algum, estavam brancos quase que por completo. A peculiaridade, reparou Jacob, era que conforme os raios do sol entravam pela janela e a iluminavam, tinha a impressão de ver uma cor ou outra voltar.

-O que aconteceu com você? – perguntou Jacob sentando-se no sofá e apoiando os cotovelos nos joelhos.

-Isso? – Natasha riu enquanto passava as mãos nos longos cabelos brancos. – Nenhum dos médicos encontrou uma explicação. E nem vão. Ainda não conseguem explicar os eventos que ocorrem além dessa existência.

-Você está na casa dos trinta. Seu corpo não foi treinado para comportar tanto poder, não está envelhecendo, está deteriorando. – Jacob levantou-se e pós as mãos nos bolsos de sua comum calça jeans desbotada.

-E é por isso que eu vou lhe entregar ela. – Natasha repôs o copo de água, agora vazio, na mesa de cabeceira e apontou com para uma porta aberta no outro lado do quarto.

Jacob praticamente flutuou com a leveza de seus passos até a porta. Esquecera o quanto aquele tom azul bebê das paredes de hospitais lhe incomodava. Olhou para dentro do quarto de visitas e viu um largo sofá creme, encolhida ao canto envolta num cobertor da Pucca estava dormindo uma criança. Uma menina de cabelos negros à altura do pescoço e pele clara quase translúcida, parecia ter herdado pouca coisa do pai. Jacob voltou ao quarto principal.

-Você estava na Irlanda quando ela nasceu. Têm quase cinco agora. O nome é Renata. – disse Natasha com um sorriso orgulhoso. – Sim, dei o nome que você sugeriu antes mesmo de saber.

-Ela já apresentou algum potencial? – perguntou Jacob. Seu tom foi seco, estava indo direto ao ponto, sentia que o tempo estava acabando.

-Ela ainda não entende o que vê ou o que faz. Mas é muito mais forte do que você quando tinha esta idade. E sim, me lembro muito bem do que você era capaz. – Natasha começou a tossir novamente, deitou e escorou a cabeça no travesseiro colocando as mãos sobre a colcha. Jacob serviu um pouco mais de água e à fez beber.

-Em minha visão achei que você chegaria há duas semanas. O que aconteceu? – perguntou Natasha assim que recuperou o fôlego. Jacob entregou o copo ainda com um pouco de água em suas mãos enrugadas e buscou o jornal que largara sobre o sofá do quarto principal.

-Precisei dar fim em um assunto há muito deixado de lado. – respondeu e jogou o periódico com a capa virada para cima sobre as pernas de Natasha. A velha leu.

ASSASSINATO A SAGUE FRIO

“Execução”. Foi o que disseram os oficias do 1º Batalhão de Policia Militar. O corpo de Ricardo Castilhos foi encontrado com um tiro na cabeça na rua Miranda Oliveira, transversal com a Sexta Avenida na capital nesta quarta-feira. Segundo os Policiais, Ricardo foi morto com apenas um tiro no centro da testa.

Sem mais testemunhas, os oficiais contam que apenas a filha de Ricardo, Sarah Castilhos, de sete anos presenciou o crime. A menina foi encontrada encolhida dentro de um Corsa Sedan estacionado em frente ao corpo do pai. O Tenente Ramires, do 1º BPM, explicou que a criança está em estado de choque e não diz nenhuma palavra desde que foi encontrada, ela foi encaminha para o Hospital Psiquiátrico Estadual ainda na noite da quarta-feira.

O Dr. Letterman, do setor de autópsia do Instituto Médico Legal da Capital, apesar de não portar informações conclusivas do caso, afirma que bala encontrada no crânio de Ricardo Castilhos é de um revolver calibre 38. Conforme rotina, tentou extrair a última visão que ficaria gravada no olho da vítima com intuito de levar ao assassino, mas diz não ter obtido sucesso. “Ele ficou de olhos fechados muito tempo, provavelmente estava com medo. Não sei dizer o que este cara viu, mas tenho certeza de que estava apavorado”, concluiu o Dr. Letterman. O caso ficou sobre responsabilidade do Tenente Ramires e continua sem suspeitos.

Natasha terminou de ler a matéria do jornal e ergueu os olhos para encarar Jacob. No instante em que tomava fôlego para falar suas forças lhe escaparam. As pupilas rodopiaram nas orbitas e a mão enrugada soltou o copo de vidro ainda com pouca bebida em direção ao chão.

-Não, ainda não Natasha. Precisamos estar os oito juntos para que funcione, você não pode nos abandonar ainda. –Jacob pôs a mão direita sob a cabeça de Natasha antes que ela caísse no travesseiro. Cobriu os olhos da mulher de cabelos brancos com a palma da mão esquerda, fechou os olhos e o colou a testa nas costas da própria mão, frente ao rosto da paciente. O copo parou sua trajetória em direção aos ladrilhos hexagonais de cor creme do hospital, tudo naquele universo deixara de existir.

A água do mar bateu em seus calcanhares. Ao horizonte o sol já se deitara quase que por completo, e a areia que cobria os pés das duas Natashas já não estava mais tão quente. Era a mesma praia de sempre, o mesmo lugar em que se encontrava com ela em seus sonhos. Desta vez ele era apenas um. Ela ainda era duas.

-Eu não sei o que você fez enquanto esteve fora nesses últimos oito anos garoto, mas você ficou forte. – disse a Natasha ruiva em um sorriso sarcástico. A pele já não estava enrugada, era a mulher de trinta que deveria ser.

-Eu vim levá-la de volta. Não você sua bruxa, nunca gostei dessa parte dela. – respondeu rispidamente Jacob ao apontar para a outra mulher distante dois passos da ruiva. Duas versões de sua amiga. Perfeitamente iguais exteriormente, a não ser pela cor do cabelo. E incrivelmente opostas em seu interior.

-Eu sei o que você quer fazer Jake, aprendeu coisas muito além da magia não é mesmo? Onde você esteve? Irlanda provavelmente, não é? Aqueles velhos são mesmo capazes de contornar a morte humana desta forma. – zombou a bruxa ruiva.

-Corra Natasha! Corra para mim, precisa chegar primeiro! – Jacob gritou para sua amiga, para a Natasha morena. Mas as forças da bruxa sempre foram superiores, mais rápida, mais esperta, mais forte. Não houve sequer uma disputa, quando Jacob esticou a mão para esperar a alma que levaria consigo, a resposta já era lógica.

O copo quebrou em centenas de pedaços, mas não espalhou água, chegou seco ao chão do quarto do hospital. Jacob foi empurrado para longe como se tomasse um choque e largou a cabeça da amiga desfalecida de encontro ao travesseiro.

Ainda esperava poder ver que fizera a escolha certa. Esperava que os cabelos brancos ficassem vermelhos e lhe mostrassem que o corpo morto em sua frente era o da bruxa. A espera durou pouco. A pele da velha Natasha deixou de ser enrugada como uma senhora de 80 e voltou aos trinta anos de idade. Os cabelos ficaram negros. Jacob salvara a alma errada.


...continua

Um comentário: