quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Peso da Alma III - Confronto

Ele tinha os braços apoiados sobre a mesa e os dedos cruzados, a cabeça largada nas mãos. Os olhos estavam fechados. Quem não conhecesse Denis diria que ele estava rezando. É claro que ele não estava rezando. A respiração era fraca, porém constante seus olhos não enxergavam, mas seus ouvidos estavam muito mais apurados que o normal, seu pensamento estava fixo em uma única imagem, esperava que ela surgisse logo, não deveria demorar.

“Ela chegou.”

Ele abriu os olhos e deu um leve sorriso.

Ao final do longo corredor da faculdade os acadêmicos que cuidavam de suas vidas medíocres normalmente não teriam notado o som de seus saltos batendo contra o piso, mas perceberam sua existência hoje, não exatamente por seus longos cabelos vermelhos ou a blusa preta colada na pele cor de neve, provavelmente o que lhes chamava a atenção era a tipóia azul que ela tinha no braço direito.

Chegou à mesa onde estava Denis, puxou uma cadeira com a mão esquerda, mão que não costumava usar, mas que ao menos pelos próximos quinze dias se tornaria sua melhor amiga. Ou pior.

-Boa noite garoto.

Ele observou a tipóia sem surpresa alguma, o que realmente o preocupava eram as manchas, os discretos pontinhos roxos que aos poucos iam se tornando mais e mais numerosos na pele leitosa da amiga, aquilo não era resultado na última noite, era conseqüência de algo que já acontecia há algum tempo e ela não havia lhe dito.

Ele não disse boa noite. Esfregou os olhos com as duas mãos por debaixo das lentes, então retirou os óculos e os largou sobre a mesa, pegou a latinha de coca-cola em sua frente e a virou no copo, apenas algumas gotas caíram.“Vazia” Parecia mais frustrado pelo refrigerante ter acabado do que por tudo o que acontecera na noite anterior. Natasha o olhava, mas não falava. Claramente eles não precisavam disso, nem sempre são necessárias palavras para que os dois conversem. Ela sabia que ele estava chateado, mas não julgava a situação, não a entendia por completo ainda. Claro que apenas não havia entendido porque ela própria lhe ocultara determinados detalhes. E era para isso que estavam ali agora. Ele precisava saber, e ela acreditava que era o único para quem poderia contar.

[...]

-Você sabe que colocar-se frente a frente com ela não surtirá grande efeito – disse Denis.

-Como assim, claro que surtirá. Você sabe que não adianta mais eu ficar mandando mensagens de texto ou conversando com ela por telefone. No ponto em que esta situação chegou... – Natasha fechou o rosto como uma torneira que pára repentinamente de jorrar água, o ar que saiu de sua boca leva o peso de seu questionamento. –Você não está pensando em...

-Renan tem que ir conosco. Caso contrário será tempo perdido.

-Você está louco, quer colocar nós três frente a frente?!

-Você superestima aquela caipira. Repete de tempos em tempos aquela baboseira sobre ela ser forte, ser como você, sobre ela ser um de nós. Ela não é um de nós. Ela é confusa e fraca, a mente dela não está pronta para um confronto direto com a sua, Renan estando junto ela vai conseguir pelo menos emitir algum som. Isso se você fizer as perguntas certas.

Natasha abriu a boca para retrucar. Mas... não havia muito a dizer,o amigo balançava uma latinha de coca-cola sobre o copo como se por persistência o liquido que se segurava no interior fosse desistir e descer até o copo, sua coca-cola sempre terminava. Desistiu e olhou para longe, passou a mãos nos cabelos longos que começavam a encrespar e coçou a barba. Quantas vezes a amiga já lhe mandara cuidar da aparência? Ele tinha os olhos distantes, mas a mente estava ali, estava ali sentada naquela mesa com ela. A dúvida de Natasha era com qual das metades do amigo estava conversando.

-Tudo bem –concordou por fim –Ele vai. Se isso te satisfaz.

Foi sutil, mas por mais que Denis tivesse tentado conter não pôde, deixou escapar um sorriso no canto da boca.

O motor do carro ficou ligado enquanto observavam Renan sair da aula, ele apareceu na porta da sala, pegou o celular no bolso e leu a mensagem de texto que recebera. Por alguns instantes ficou atônito, provavelmente leu e releu a mensagem várias vezes sem acreditar no que estava acontecendo. Ergueu a cabeça exatamente para o ponto em que os dois o esperavam, o ponto que era descrito na mensagem. Começou a andar.

-Você realmente a acha uma fraca?

-Você sabe que sim Natasha, a única razão para eu concordar com isso é a estima que você tem para com essa garota. Sinceramente eu não sei o que você pretende esta noite, não sei o que você vê nessa nela que faz você pensar que ela é assim tão especial. Então...

-Então você está pagando para ver. –disse em meio a um sorriso. Essas não eram suas palavras, é uma frase que geralmente o próprio Denis usaria.

-Não exatamente.

-Não?

-Não. Esta noite estou aqui, porque eu tenho a leve sensação de que eu deveria estar aqui.

Ela o olhou muito séria, esperando que ele terminasse a frase.

-Todos estamos aqui para fazer aquilo que todos estamos aqui para fazer.

Ela o olhou mais uma vez, mas desta vez no fundo de seus olhos, no fundo de sua alma, e através dela.

-Não é você mesmo que diz que não acredita nisso Denis?

-O que eu acredito não importa. O que importa é o que acontece hoje.

Olharam-se por um segundo eterno. Havia muito mais do que palavras e ar entre eles, as piscadas estavam sincronizadas, os corações batiam no mesmo ritmo, a respiração compassada. Ela o compreendia, sabia que ele tinha mais a dizer, mas que aquele não era o momento oportuno. Ele esperaria para sentar e conversar, e este momento não estava longe.

A porta do carro se abriu e Renan entrou no banco traseiro, largou a mochila de lado e ficou olhando para fora. Denis olhou para a amiga sentada ao seu lado. O jovem no banco de trás não o ouviu perguntar, ninguém teria ouvido nem mesmo que estivesse entre os dois enquanto se falavam. Não existiam palavras. Natasha afirmou com a cabeça. O motor ligou.

Era um bairro escuro, postes distantes e calçamento irregular. A casa tinha um muro de meia altura branco e um portão de ferro marrom começando a enferrujar. Natasha abriu o celular cor de rosa e discou como se já o tivesse feito inúmeras vezes antes. Fizera.

Um toque. “Ela jamais atenderia no primeiro”

Dois toques. “Se perguntava se deveria. Se conseguiria”

Três toques. “Segura o telefone e fecha os olhos, pede que não seja nada grave.”

Quatro toques.

-Alô?

-Estou na frente na tua casa. Venha, precisamos nos falar.

Não há resposta, apenas um silêncio. Um suspiro, e enfim...

-Estou indo.

O rosto de Jennifer ao sair era tão incrédulo quanto assustado. Natasha abriu a porta e desceu do carro decididamente. Renan não saiu, olhou para o espelho retrovisor em busca da face de Denis e percebeu que este já o observava.

-E agora? –perguntou Renan. –O que acontece agora?

-Sabe que não posso te dizer Renan.

-Mas você sabe. Você e ela. Eu não entendo, mas essas coisas... vocês... vocês sempre...

-Renan! Não me faça perguntas, eu não posso respondê-las. Eu te trouxe até aqui, deste ponto você precisa ir sozinho.

-Eu não consigo fazer isso.

-Não é essa a questão meu caro. Você precisa fazer.

Renan baixou os olhos, tinha perguntas, dúvidas, medo, mas percebeu que não era Denis que lhe traria as respostas, mesmo que às tivesse. Abriu a porta e saiu do carro, foi na direção das garotas, mas não se atreveu a chegar muito perto e manteve-se há alguns passos de distancia. Renan ainda olhou uma última vez para trás e viu Denis abrir a porta e se escorar no capô do carro com as mãos nos bolsos.

Ele sentira ciúmes e raiva de todos os garotos que já se atreveram dizer ser amigos de sua namorada, mas com esse, esse... esse cara era diferente. Não sabia dizer como nem por que, mas algo nele era diferente dos demais. Renan não saberia expor em palavras, mas era como se gostasse apenas de uma parte de Denis, apenas de uma metade, enquanto a outra... a outra o assombrava.

Natasha parou frente à garota e estendeu a mão.

-Natasha. É um prazer enfim conhecê-la pessoalmente.

Sem levantar os olhos para encará-la, Jennifer concluiu o cumprimento com um aperto fraco, mas sentindo os ossos da mão estalar.

-Jennifer.

Os olhos castanhos de Natasha, que em momentos críticos tornavam-se negros, assombrosos enxergavam não apenas o rosto da garota pouco mais baixa que ela, se fixavam em seu espírito. Seus lábios cor de cobre deram início a um diálogo que demoraria a se findar:

-Se você estivesse em meu lugar você iria querer que essa situação continuasse? Você iria querer que ela se prolongasse e arrastasse da maneira como está?

A garota ergueu o olhos, mas não abriu a boca. Não conseguia. Simplesmente não tinha forças para encará-la. A imagem do sorriso de satisfação de Denis lhe passou pela cabeça. Detestava quando ele tinha razão.

-Você gostaria Jennifer?

-Não.

-Aaaah. Você não gostaria?

-Não. Se eu estivesse no seu lugar não iria gostar dessa situação.

-Você tem algum problema Jennifer! –Natasha ergueu a voz em um rompante que fez os olhos da garota estalarem e se tornarem mais brancos do que acinzentados, –Você me perguntou o que eu achava sobre você continuar se encontrando com meu namorado e eu respondi que não gostaria disso! Que parte dessa frase é difícil de entender? Que parte do NÃO você não entendeu?

Pela primeira vez os cabelos de Natasha perderam a forma lisa e seus braços gesticularam no ar ferozmente. Se Jennifer fosse uma tartaruga provavelmente a cabeça estaria escondida, por vergonha ou medo, difícil dizer. Natasha se acalmou e voltou a falar, desta vez, suavemente, como o de costume.

-Existem coisas que queremos demais para nós, mas elas não são nossas, são missão de outras pessoas e talvez nos não conseguíssemos suportar. Não deseje o que é dos outros, nem sempre o objeto de desejo pode ser seu.

Renan abriu a boca para falar, mas Natasha virou para encará-lo e antes mesmo que pudesse proferir qualquer palavra ela já estava falando com o dedo indicador rígido apontado para o centro de seu rosto.

-Eu ainda não te perguntei nada.

Ele estava assustado demais com tudo aquilo que nem sequer pensou em se perguntar como ela sabia que ele iria falar. Ela estava de costas para ele, não podia vê-lo. Certas coisas em Natasha ele preferia apenas aceitar, sem perguntas.

-Responda-me você quer continuar com essa situação? Você realmente não me conhece. Vai pagar para ver.

Denis continuava escorado no carro com as mãos nos bolsos da calça e o olhar distante, seu corpo podia estar longe, mas ele acompanhava cada detalhe que se passava na conversa, e ao ouvir a própria frase dita pela boca da amiga, novamente não pode conter um pequeno sorriso.

Jennifer vacilou perante as palavras de Natasha, mas finalmente falou.

-Há coisas que fazemos sem saber por que, fazemos pelo simples fato de sentir que devemos.

Natasha ficou atordoada. Não esperava ouvir aquilo. Esperava, mas não acreditava que Jennifer já tivesse chegado nessa conclusão. Então fez um sutil gesto com a mão direita, dizendo para Renan se aproximar.

-Aqui Jennifer.

A expressão da garota dizia “O que?”, seus olhos novamente mostraram quase todo o globo ocular ao ver Renan, como se somente o tivesse notado nesse instante, sua concentração em confrontar Natasha era tanta que nem sequer notara a presença dele.

-Pode ficar com ele Jennifer. Estou o entregando com um laço vermelho. Mas saiba, ele é um fardo muito difícil de carregar, e se acaso você se cansar nas próximas duas semanas não venha bater arrependida na minha porta, não o aceitarei de volta nem mesmo em um pacote crivados de diamantes.

Renan se aproximou roendo as unhas na tentativa de entender o que ambas falavam e o que acontecia.

-O que está acontecendo? –perguntou.

- Está acontecendo que vocês dois vão ficar juntos, como sempre quiseram. –as palavras saiam da boca de Natasha com firmeza não como alguém que faz uma negociação, mas como se estivesse impondo uma decisão.

Renan deu um passo para trás como por espanto, balançou negativamente a cabeça e falou. Pela primeira vez ele estava expondo o que pensava.

-Eu não quero ficar com ela. Eu apenas estava confuso. O que eu sinto por ela era apenas...eu não sei explicar o que eu sinto.... senti por ela... Eu amo você! O que eu sinto por ela eu nem sei dizer o que é. O que foi. É com você que eu quero ficar, ela... ela já aconteceu, é passado. Meu futuro é você.

Denis assistia a tudo com profundo interesse, tentando descobrir qual era o próximo passo, tudo o que acontecera até o momento era previsível, Natasha não teria planejado isso por tanto tempo sem um motivo maior, sem uma razão, algo que...

Os olhos verde claro de Denis arregalaram-se como se tomasse um choque. Encontrara a pasta marrom empoeirada nos arquivos de seu cérebro. Releu o dia em que sua alma estava por um fio e Natasha o puxou daquele abismo, a energia que ela lhe passou, parte de sua luz, despertando a outra metade dele próprio. Essa era a resposta. Tão simples, esteve ali diante dele todo esse tempo.

“Mas ela já fez isso comigo no passado. Ela não pode fazer novamente, não está forte o suficiente, se ela fizer novamente isso resultaria em...”

Tirou os olhos do além vida e virou-se para os três, precisava haver tempo ainda, precisava impedi-la.

Tempo.

Tempo era essencial.

Tempo.

Tempo não existia mais.

Por um segundo ele se manteve inerte, com as mãos postas nos bolsos, os músculos paralisados e o cérebro recusando-se a acreditar no que os olhos viam. Foi só então que deixou o outro assumir. O outro saberia o que fazer.

Correu.

Natasha estava caída no chão. Jennifer estava pálida como se tivesse enxergado algo que jamais pensara existir. Renan ajoelhado ao lado dela soluçava e chorava tão profundamente que sua mente não conseguia mandá-lo fazer nada, e mesmo que mandasse seu corpo não obedeceria.

Denis chegou rapidamente ao lado de Natasha e tirou Renan de onde estava, empurrando-o para longe, e a segurou nos braços. Ela estava perdendo os sentidos, tinha os olhos meio abertos, a face muito mais pálida que o habitual. Olhou para o corpo dela, buscou alguma ferida. O braço, o braço direito estava torto, como se estivesse...

“quebrado?”

Sacudiu sua cabeça para que recobrasse a consciência.

-Natasha! Acorde!

Ela abriu os olhos levemente.

-Por isso você não me contou. Sabia que se me contasse eu lhe impediria.

Natasha ainda deu um leve sorriso antes de perder completamente os sentidos.

“Sabia que você entenderia.”

-Natashaaaa!


To be Continued


Diogo S.Campos

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